Isenção por moléstia grave: a qualificação dos subscritores de laudos médicos

por out 14, 2022Artigos0 Comentários

Por Ludmila Mara Monteiro de Oliveira e Mário Hermes Soares Campos

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que até 2026 abrigará o Brasil a sexta maior população de idosos do orbe terrestre [1]. E, com o envelhecimento, tornam-se os indivíduos mais propensos ao desenvolvimento de doenças, tais como câncer, moléstias de gênese crônica e outras tantas de origem cardiovascular [2]. O aumento da expectativa de vida, com o consequente diagnóstico de doenças, traz também reflexos no campo do direito tributário.

O inciso XIV do artigo 6º da Lei nº 7.713/88 traz, como hipótese de isenção do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), “os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma”.

Para fazer jus ao benefício fiscal, necessário o preenchimento de três requisitos inarredáveis e cumulativos: (1) que seja o indivíduo portador de moléstias que constem no rol legal; (2) que os rendimentos sejam oriundos de aposentadoria, pensão ou reforma; e, (3) que haja comprovação da enfermidade mediante a apresentação de “laudo pericial emitido por serviço médico oficial, da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios” — ex vi do artigo 30 da Lei nº 9.250/95.

Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça possui súmula, a de nº 598, no sentido de que “desnecessária a apresentação de laudo médico oficial para o reconhecimento judicial da isenção do Imposto de Renda, desde que o magistrado entenda suficientemente demonstrada a doença grave por outros meios de prova”. Entretanto, no âmbito do Carf, em estrita observância à legislação de regência, editado o verbete sumular de nº 63 que, ao contrário do entendimento do Tribunal da Cidadania, repisa a imprescindibilidade de comprovação da moléstia “por laudo pericial emitido por serviço médico oficial da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”. As conselheiras e os conselheiros do Carf devem, sob pena de perda de mandato, observar o enunciado da retromencionada súmula — ex vi do inciso VI do artigo 45 do Ricarf.

Embora estejam os requisitos legais para a fruição da isenção bem especificados, existindo ainda súmula no Conselho Administrativo para melhor aclará-los, não se revela a prática sem entreveros. Da análise da jurisprudência do Carf é possível encontrar autuações lastreadas na (in)competência de determinados subscritores de laudos, ainda que estivessem desenvolvendo suas atividades em serviço médico incontestavelmente oficial. Sob tal ótica, médicos que constariam no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde como “bolsistas”, “contratados temporariamente” ou “autônomos”, não estariam aptos para a emissão de laudos, a despeito de não pairarem dúvidas sobre a qualificação do estabelecimento como “serviço médico oficial”. A existência de vínculo formal de contratação, como empregado ou concursado, entre o médico e o serviço oficial seria, para algumas autoridades fazendárias, conditio sine qua non para o reconhecimento da isenção.

Com arrimo no inciso V do §5º do artigo 6º da Instrução Normativa nº 1.500/14, defensores de uma primeira vertente, afirmam ser imprescindível que lançado o número de registro no órgão público, “o que ocorre quando há vínculo de emprego com o referido órgão” [3]. Concluiu-se que, “não se confirmando esse vínculo, os médicos em questão não podem ser considerados como integrantes do serviço médico oficial em comento, para a finalidade de emissão de laudo que ateste a isenção. (…) [E]sse laudo não foi emitido por serviço médico oficial, conforme exige o art. 30, da Lei nº 9.250, de 26/12/1995 e a súmula 63 do Carf” [4]. Noutra oportunidade, ainda em igual sentido, chancelada a higidez do laudo médico apresentado, sob o argumento de que “[e]m consulta efetuada ao sítio http://cnes.datasus.gov.br/, relativo ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, confirma-se que se trata de instituição da administração pública de gestão municipal, bem como a existência de vínculo empregatício do profissional médico que assina o laudo pericial com a instituição” [5].

Em sentido oposto, para os filados à corrente majoritária, qualquer vínculo jurídico entre o serviço oficial e o médico autoriza a subscrição de laudos, escapando ao escopo das autoridades fazendárias perquirir as condições de contratação ou a forma de investidura no cargo ou função do profissional de saúde. Assim, desde que efetivamente vinculado ao serviço médico oficial e chancelado por tal serviço, merece ser reconhecida a aptidão do laudo emitido pelo médico, para fins de concessão do benefício fiscal [6].

Num exercício de abstração, explicam os que defendem tal vertente, que a exigência posta por algumas autoridades fazendárias implicaria em injustificado discrímen“dirigindo-se ao órgão público, lá deverá requerer do médico que o atenda, antes de elaborar um laudo, que comprove a natureza do seu vínculo; não tendo vínculo empregatício, terá de exigir o atendimento por outro profissional. Pior, dois Contribuintes que, tendo se dirigido ao mesmo órgão público, com a mesma doença, terão situação diferente — um sendo aceito o seu laudo e outro não — exclusivamente em função da sua sorte de ter sido ou não atendido por profissional empregado ou autônomo” [7].

Como bem explicitado na Solução de Consulta Interna nº 11 da Cosit, “serviço médico oficial é o serviço de saúde pertencente a estrutura das pessoas jurídicas de direito público, independentemente do Poder ao qual se vinculem, e as autarquias e as fundações, instituídas e mantidas pelo Poder Público”. Pela teoria da aparência há de ser reconhecida a competência dos médicos vinculados ao serviço médico oficial, não podendo impor ao contribuinte o ônus de aferir sob qual regime contratado o profissional de saúde, a fim de ver reconhecida a validade do laudo por ele expedido. A indigitada construção teórica, que está umbilicalmente atrelada à proteção da confiança e da boa-fé, salienta que “[n]o extenso campo das aquisições dos direitos, a aparência jurídica está aparelhada para proteger os terceiros, (…) agindo em favor daqueles que, de maneira invencível, creem naquilo que se exterioriza” [8]. Portanto, ao se dirigir à unidade de saúde para fins de cumprimento dos requisitos legalmente impostos para o gozo da isenção, presume o portador de moléstia grave que o médico que lhe atendeu possui plenos poderes para subscrição do laudo.

Por derradeiro, ainda com arrimo na Solução de Consulta Interna nº 11 da Cosit “depreende-se que o laudo pericial, disposto no art. 30 da Lei nº 9.250, de 1995, é um parecer técnico emitido por médico legalmente habilitado, vinculado a serviço médico oficial, não havendo a necessidade de especialização na área considerada para a perícia, mas que possua conhecimentos na identificação da moléstia grave prevista no inciso XIV do art. 6º da Lei nº 7.713, de 1988, ou seja que o profissional tenha condições de esclarecer a existência ou não da moléstia grave”. Destarte, não se exige, para efeito de emissão do laudo pericial, que seja expedido por médico perito, bastando para tanto que o profissional médico “possua conhecimentos na identificação da moléstia grave”.

Sem se descurar dos limites impostos pela legislação de regência, não podem as conselheiras e os conselheiros do Carf olvidar que o objetivo da benesse fiscal é “abrandar o impacto da carga tributária sobre a renda necessária à sua subsistência e sobre os custos inerentes ao tratamento da doença, legitimando um ‘padrão de vida’ o mais digno possível diante do estado de enfermidade” [9]. A legislação que outorga isenção, como prevê o inciso II do artigo 111 do CTN, deve ser interpretada literalmente. Isto é: nem além nem aquém da norma isentiva.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Active ageing: a policy framework. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/67215. Acesso em 10 out. 2022.

[2] Estudos apontam que quase 40% dos idosos possuem alguma doença crônica e, aproximadamente, 30% possuem duas ou mais. LIMA-COSTA, Maria Fernanda. Aging and public health: the Brazilian Longitudinal Study of Aging (ELSI-Brazil). Disponível em: https://doi.org/10.11606/S1518-8787.201805200supl2ap. Acesso em: 10 out. 2022.

[3] Cf. o voto vencido do seguinte acórdão: Carf. Acórdão nº 2202-003.709, cons. rel. ROSEMARY FIGUEIROA AUGUSTO, Redator designado Cons. DILSON JATAHY FONSECA NETO, sessão de 14 mar. 2017 (por maioria).

[4] Idem.

[5] CARF. Acórdão nº 2002-000.355, cons. rel. CLAUDIA CRISTINA NOIRA PASSOS DA COSTA DEVELLY MONTEZ, sessão de 26 set. 2018 (unanimidade).

[6] Cf. nesse sentido: Carf. Acórdão nº 2202-009.172, cons. rel. LUDMILA MARA MONTEIRO DE OLIVEIRA, sessão de 14 set. 2022 (unanimidade); Carf. Acórdão nº 2003-002.530, cons. rel. SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 25 ago. 2020 (unanimidade); Carf. Acórdão nº 2402-009.312, cons. rel. DENNY MEDEIROS DA SILVEIRA, sessão de 3 dez. 2020 (unanimidade); Carf. Acórdão nº 2003-000.072, cons. rel. WILDERSON BOTTO, sessão de 25 abr. 2019 (unanimidade).

[7] Cf. o voto vencedor do seguinte acórdão: Carf. Acórdão nº 2202-003.709, cons. rel. ROSEMARY FIGUEIROA AUGUSTO, redator designado cons. DILSON JATAHY FONSECA NETO, sessão de 14 mar. 2017 (por maioria).

[8] KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência jurídica. São Paulo: Método, 2007. p. 65.

[9] STJ. REsp nº 1.507.320/RS, rel. min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 10/2/2015, DJe de 20/2/2015.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-out-12/direto-carf-isencao-molestia-grave-subscritores-laudos-medicos

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